quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Coisas de Goiás: Maria



Coisas de Goiás: Maria
Cora Coralina
(1889-1985)
Maria, das muitas que rolam pelo mundo.
Maria pobre. Não tem casa nem morada.
Vive como quer.
Tem seu mundo e suas vaidades. Suas trouxas e seus botões.
Seus haveres. Trouxa de pano na cabeça.
Pedaços, sobras, retalhada.
Centenas de botões, desusados, coloridos, madre-pérola, louça,
vidro, plástico, variados, pregados em tiras pendentes.
Enfeitando. Mostruário.
Tem mais, uns caídos, bambinelas, enfeites, argolas, coisas dela.
Seus figurinos, figurações, arte decorativa,
criação, inventos de Maria.
Maria grampinho, diz a gente da cidade.
Maria sete saias, diz a gente impiedosa da cidade.
Maria. Companheira certa e compulsada.
Inquilina da Casa Velha da Ponte...
Digo mal. Usucapião tem ela, só de meu tempo,
vinte e seis anos.
Tão grande a Casa Velha da Ponte...
Tão vazia de gente, tão cheia de sonhos, fantasmas e papelada,
tradicionais papéis de circunstância.
Seus fantasmas, enterro de ouro. Lendas e legendas.
Cabem todas as Marias desvalidas do mundo e da minha cidade.
Quem foi o pai, e a mãe e a avó de Maria?
Quantos anos tem Maria? Como foi que nasceu? De que jeito sobreviveu?
Estacou no tempo, procura sempre no quintal seus grampinhos
repassados na densa e penteada camada capilar,
onde acomoda em equilíbrio singular seus misterios...
Teres e mordomias e seus botões alegres, coloridos, seriados,
chapeando a veste, que por ser pobre não deixa de ser nobre,
resguarda sua nudez casta, inviolada.
Sete blusas, sete saias, remendos, cento de botões
cem números de grampinhos. Muito séria, não dá confiança.
Garrafa de plástico inseparável. Água, leite, mezinha, será...
Entre Maria, a casa é sua.
Nem precisa mandar. Seus direitos sem deveres,
vai pela manhã e volta pela tarde.
Suas saias, seus botões, seus grampinhos, seu sério,
muda e certa.
Maria é feliz. Não sabe dessas coisas sutis e tem quem a ame.
Uma família distinta da cidade, que a conheceu em tempos
dá referência: Maria tinha até leitura e fazia croché,
ponto de marca, costurava.
Tem a moça Salma, humana e linda, flor da cidade,
luz da sociedade goiana, ela preza Maria e fala
como fala a generosidade das jovens: Maria me contava estórias
quando eu era pequena.
Fui carregada nos braços da Maria.

Meus filhos e netos quando chegam perguntam:
"E Maria, ainda dorme aqui?"
Todos gostam de Maria, e eu também.

Estas coisas dos Reino da Cidade de Goiás.

Fui visitar minha amiga Dete (Maria Bernadete Garcia Ferreira de Almeida) para conversarmos, trocar ideias sobre os nossos Blogs, tomar café – pra variar um pouco. Curioso como sempre, fui fuçar sua estante e ver os títulos de obras que ela possui. Entre os demais livros haviam um Neruda e Cora Coralina. Em homenagem a minha amiga é que publico este belo poema da Cora Coralina.

Um comentário:

  1. Tiago, muito linda a homenagem...fiquei emocionada...não quero receber poemas e flores depois de minha partida...Se os mereço, os quero aqui e agora! Obrigado!!!!!Beijos!!!!!!!!

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